“Som na faixa” e a revolução na indústria da música.
- Prof. Thiago Holanda
- 27 de mar. de 2023
- 5 min de leitura
A indústria da música foi sacodida ao longo das últimas duas décadas, enfrentando diversas dificuldades que a forçaram a reconfigurar boa parte da sua estrutura operacional, bem como a forma como os operadores geram valor. Esse artigo fala do papel do aplicativo Spotify dentro desse processo de mudança.

A geração atual de jovens jamais vai saber o que é passar horas na internet baixando um software de compartilhamento de arquivos de poucos megas, como o Kazaa ou eMule, para, só depois, tentar encontrar (e gastar mais algumas outras horas) para baixar uma música. Isso porque, há alguns anos, surgiu uma empresa que transformou vários aspectos do mundo da música: o Spotify.
Quem não conhece o famoso aplicativo de streaming de música?
Hoje, com aproximadamente 15 anos de idade, a empresa coleciona cifras impressionantes, com presença em quase todos os países do ocidente, ditando novas tendências da música e controlando boa parte da indústria musical.
O gráfico abaixo mostra a evolução do número de usuários totais do serviço de 2015 até 2022, por quadrimestre:

No último quadrimestre de 2022, o número de usuários premium do serviço foi de 205 milhões. Ou seja, quase 42% do total de usuários. A receita atual da empresa, de acordo com o portal Statista, foi de 11,72 bilhões de euros.
Portanto, não há dúvidas de que o Spotify tem se destacado no mercado mundial, com um público sempre crescente e perspectivas positivas de negócios.
Recentemente, a Netflix lançou uma série intitulada SOM NA FAIXA, contando a história do Spotify e as dificuldades enfrentadas ao longo dos primeiros anos.

A série é sueca (Spotify também) e utiliza, no cast, um grupo de atores desconhecidos no cenário global de entretenimento. Porém, a produção é excelente e narra, em 6 episódios, uma história envolvente e muito curiosa. Uma das características mais interessantes da série é que cada um dos episódios é narrado sob o ponto de vista de alguém que está envolvido na história: desde os programadores do sistema, os magnatas da tradicional indústria da música e, obviamente, o CEO da empresa (Daniel Ek).
Não pretendo, aqui, me deter muito na história da empresa, nem fazer uma análise detalhada do segmento de mercado. Quero, tão apenas, citar algumas lições percebidas por mim enquanto assistia a série.
Deixo, como alerta, o fato de que alguns desses insights possuírem spoilers da série. Portanto, tenha ciência disso ao longo da leitura.
Lição 1 - negócios disruptivos, em regra, exigem confrontação: uma das maiores dificuldades enfrentadas logo nos primeiros anos de existência, foi enfrentar a resistência das grandes gravadoras para ceder os direitos autorais dos artistas. As gravadoras estavam céticas quanto a viabilidade do projeto, e já havia um “ressentimento” muito grande com relação ao problema da pirataria.
Durante décadas, as grandes gravadoras monopolizaram de tal forma o mercado musical que fortunas foram criadas em cima desses empreendimentos.
De repente, com a popularização da internet, surgem sites especializados no compartilhamento de arquivos e as gravadoras começam a perder muito dinheiro com isso (a série foca muito no antigo The Pirate Bay e, inclusive, mostra o processo envolvendo seus fundadores). Por conta disso, as gravadoras foram muito duras nas negociações com o Spotify. Porém, é preciso avaliar que o surgimento dessa plataforma também atendeu interesses dessas empresas, que se viam ameaçadas pela pirataria.
Nesse contexto, uma pergunta vem à tona: o Spotify colocou a pirataria em cheque?
É difícil dizer. Talvez sejam necessários maiores dados e pesquisas mais aprofundadas para se afirmar algo dessa natureza. Porém, um gráfico interessante da MUSO (plataforma voltada para análise de dados que envolvem pirataria digital) mostra que nos últimos anos, a pirataria musical tem diminuído consideravelmente.

Como é possível verificar no gráfico acima, houve um decréscimo de 65% na quantidade de acessos a pirataria musical entre 2017 e 2021. Segundo um relatório emitido pela citada base de dados, a decisão da indústria musical de encorajar conteúdos exclusivos em plataformas de streaming gerou um efeito positivo na queda da pirataria.
Nas negociações pelos direito autorais, as gravadoras acabaram “comendo” um percentual considerável das receitas do Spotify, o que até hoje gera um enorme custo para a empresa. Porém, há de se reconhecer que o futuro das gravadoras era duvidoso se não houvesse o surgimento de uma plataforma dessa natureza, que fosse capaz de oferecer uma alternativa viável para a pirataria.
Lição 2 – é fundamental escolher uma equipe que acredite na ideia: um dos grande méritos dos fundadores do Spotify foi escolherem uma equipe extremamente competente, com destaque para o programador Andreas (CTO). É visível que houve genialidade por parte dos programadores em conseguir desenvolver um sistema inédito, que apresentava a mídia em tempo real.
A série destaca o fato de que Andreas era uma espécie de libertário, ou seja, alguém que acreditava na liberdade como valor supremo, e que seu engajamento no empreendimento foi muito mais por acreditar na ideia do que acreditar no “negócio” (essa questão passa a ser um dilema muito difícil de lidar, o que culmina na saída do programador do negócio).
Para o sucesso de qualquer empreendimento, seja de tecnologia ou não, é essencial que se escolha uma equipe não apenas pela capacidade técnica, mas também pela capacidade de engajamento e automotivação. É fundamental, acima de tudo, acreditar na visão do negócio.
Lição 3 – é preciso enxergar além daquilo que todos estão vendo: algo muito presente na série, é o fato de que Daniel Ek estava convencido de que um streaming de música era a solução para o colossal conflito entre gravadoras e sites de pirataria. Não foi fácil convencer os outros a respeito disso, especialmente os gigantes da música. Porém, com uma boa comunicação e a apresentação detalhada do modelo de negócio, foi possível despertar o interesse das gravadoras. Nesse quesito, foi fundamental a participação de Martin Lorentzon, sócio fundador. Aliás, a próxima lição tem conexão direta com o seu personagem...
Lição 4 – é fundamental formar uma equipe com pessoas que pensam diferente de você: a tentação de todo líder imaturo é colocar pessoas que estão dentro da “mesma caixa” de pensamento, com o intuito de facilitar o processo decisório e agilizar a execução de planos (o que, de fato, acontece). Porém, quem escolhe equipe “monocromáticas” fica completamente vulnerável a falta de diversidade de ideias e se torna refém de uma visão restrita da realidade.
No episódio 5, Martin Lorentzon fala da importância de se cercar de pessoas que estão em “caixas diferentes”. Ou seja, gente que pensa de forma diferente e veem o mundo com outros olhos. Isso enriquece qualquer equipe e fornece uma solidez na hora da tomada de decisão.
É possível que isso torne o ambiente mais conflituoso? Sim, com certeza!
Uma equipe dessa natureza está bem mais sujeita a conflitos. Porém, ao criar um ambiente onde os conflitos possam ser canalizados para a criação de novos caminhos, todo empreendimento tende a se tornar mais inovador.
Lição 5 – é preciso estar preparado para a oposição: além dos conflitos já relatados aqui (com as gravadoras), o Spotify também enfrentou diversos confrontos com artistas grandes e pequenos, além de inúmeras batalhas judiciais. Ao longo dos anos, o modelo de negócios da empresa foi intensamente questionado, especialmente por artistas de menor expressão, que denunciavam que o Spotify “explorava” os artistas através de um contrato abusivo, sem dar chances reais para o merecido reconhecimento financeiro.
Esse problema marcou bastante a trajetória do Spotify que, em 2014, teve de lidar com o rompimento anunciado pela Taylor Swift, que abandonou a plataforma, alegando que não havia justiça na hora de distribuir os ganhos. Taylor e outros cantores anunciaram sua saída e geraram inúmeros problemas para a plataforma, culminando em protestos e, inclusive, ações judiciais.
Enfim, essas são algumas lições interessantes que captei ao assistir a série. Finalizo insistindo para que você assista e, além de poder conhecer essa interessante história, possa extrair seus próprios aprendizados. Além de, claro, ser uma excelente programação de entretenimento.
Comments